segunda-feira, fevereiro 21, 2005

De Porto Alegre a Ijuí - agradecimentos

O pedal Poa/Missões/Garopaba por fim se tornou Poa/Ijuí.
Agradeço a todos os que participaram desse pedal fantástico e a todos aqueles que não puderam participar por um motivo ou outro.
Agradeço àqueles anônimos, ciclistas ou não, que nos incentivaram e nos apoiaram nestes oito dias de pedal.
Faço também um agradecimento especial ao Luiz Faccin, que além de nos indicar um ótimo hotel, nos auxiliou com um carro de apoio nas imediações de Santa Cruz do Sul.
Peço desculpas a todos se fui grosseiro ou impaciente em alguma ocasião.
A adrenalina/endorfina às vezes pode nos levar a crer que não fazemos parte de um grupo.
No nosso caso, o que o que mais importava era a camaradagem e a paisagem, não os dados do ciclocomputador, ou a desvairada tentativade se cumprir uma programação/roteiro de viagem.
Alguém, muito lúcido, já tinha feito um comentário a respeito, nas imediações de Jaguari:
-Pessoal, isso aqui não é treino para o Audax nem Big-brother!

Cada vez que alguém ia abandonando o passeio eu sentia uma espéciede nostalgia profunda. Quando restou somente o Renato e eu, e estávamos nos preparando para pedalar até Passo Fundo, eu disse a ele com certa tristeza:
-Renato, agora somos só nós dois...
E ele respondeu:
-Nós dois e Deus. Bela resposta.
E Deus quis que retornássemos à Porto Alegre naquele dia...

"Fiat voluntas Tua"

sábado, fevereiro 19, 2005

De Porto Alegre a Ijuí - relato

O relato da viagem de bicicleta de Porto Alegre a Ijuí está no blog bicibrasil - pedalando pelo brasil com "s" - do grande companheiro de pedal Luis.



Do Bicibrasil:


sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Viagem às Missões parte final

São Miguel das Missões/Ijuí (86kms)

Alguma coisa está errada. O meu total de quilometragem é de 700kms mais ou menos. Os computadores marcaram 800kms segundo o Renato. Bem, não vou chorar os 100kms. Ainda pedalamos pra cacete.

Adolf Domicó visitou as Missões em 1934. Eu sei disso porque ele caprichou na grafite dele. Espero que tenha gostado das ruínas tanto como eu.

O site das missões é: www.missoes.iphan.gov.br, para aqueles que querem ver fotos e obter mais informações.

Eu sempre me perguntei porque os portugueses e os espanhóis se uniram para destruir o projeto dos Jesuítas. Português e Espanhol não cooperavam em coisa nenhuma. Depois de visitar São Miguel e ver as ruínas e os mapas, acho que eu sei porque. Os Jesuítas viraram uma potência militar que ameaçava controlar o transporte fluvial do sul do hemisfério, uma situação intolerável para os reis ibéricos. Essa é a teoria dum amador. Não tem que levá-la a sério.

Um pequeno museu tem uma coleção de santos esculpidos em madeira. É um trabalho artístico impressionante. A peça de que mais gostei foi uma pequena imagem de São Nicolau com o rosto dum índio guarani. Emocionou-me. Foi uma comunicação direta com um artista morto há séculos.

Mais 12kms de asfalto grudento. Mais caminhões perigosos. Mais acostamento ruim. O único prazer que tive na viagem a Ijuí foi um breve descanso na Vinícola Fin.

Três gerações de tradição italiana garantem um vinho maravilhoso. Posso recomendar o Niagra, com um bouquet de fruta delicado, mas encorpado, o Moscatel, mais robusto, que deixa uma sugestão de pêra no paladar, e o Bordeaux, elementar sem ser agressivo. O suco de uva puro também é uma delícia.

Achei o José e o Renato na praça central de Ijuí, de onde uma emissora de televisão estava transmitindo o programa da Lotto. Eu não ganhei premio nenhum.

Nos alojamos na casa duma senhora que aluga quartos para estudantes. Depois de comer uma pizza ruim demais e cara demais, me despedi de meus parceiros. Eles iam continuar a viagem às seis horas e eu tinha que pegar um ônibus a Porto Alegre pela manhã. Caí no sonho lembrando-me dos meus dias de estudante.

Epílogo.

Quando acordei, José e Renato já tinham ido embora. Senti saudades deles. Paguei pelo meu quarto e pedalei a rodoviária.

Comprei o último espaço disponível no semi-direto das 12:50. O funcionário foi muito gentil. Ele deu-me duas caixas de papelão e corda para embalar a Vovô-Matic. Desmontei a bicicleta e a embalei. Quando estava amarrando o último nó, quem aparece se não o Renato e o José. José tinha estourado um joelho e teve que desistir da viagem. Eles pegaram o pinga-pinga das 10horas.

Eu viajei na poltrona #50, ao lado do banheiro, sentindo esse cheirinho bom até Porto Alegre. Devi ter pegado o pinga-pinga com os amigos.

Montar a bicicleta no meio da rodoviária em Porto Alegre foi o maior saco. Saí pedalando pela Mauá e achei que as ruas de Porto Alegre são até mais perigosas que a 285. Tive o prazer de ver o Renato quando passei pelo Gasômetro.

-O José pegou um táxi na rodoviária e foi pra casa.
-Coitado. Quanto pedalamos?
-800 quilômetros.

Não importa se foram um pouco mais ou um pouco menos. A distancia não é medida em quilômetros. Ela é medida em camaradagem, solidariedade e vivências.


Dicas e etc.

*Lembra-te de manter um ritmo constante e não uma velocidade constante.
*É um passeio e não uma competição.
*Mantém contato visual com os teus parceiros.
*Caminha um quilômetro cada três ou quatro horas de pedal.
*Toda subida não tem que ser feita no pedal ou de uma vez só. Cuida de teus joelhos.
*Faz paradas curtas em lugares agradáveis (5-10 minutos).
*Lembra-te de agendar tempo para a manutenção básica do dia a dia. (ajustar a bicicleta e lubrificá-la, lavar a roupa, comprar comida, procurar um remédio, fazer um telefonema, etc.). Não queres precisar fazer essas coisas às 1horas da manhã ou num domingo de feriado.
*Usa sabonete de cirurgião (sara pequenas infecções).
*Vaselina ou Hypogloss pra bunda antes de pedalar.
*Protetor solar, repelente, papel higiênico.
*Escova os dentes.
*Usa camisinha.

// posted by luis @ 9:39 AM (0) comments links to this post

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Viagem às Missões parte 3

Ernesto Alves/Santiago (27kms)

Eu dormi por 14 horas. Só me mexi para mudar a rede do sol para a sombra. Na noite anterior, a gente jantou no Mirante Bar, carne assada, aipim, arroz, salada e não me lembro o que mais. O dono não sabia quanto cobra-nos. "Paguem o que vocês achar certo" foi o que ele diz. As sobras do jantar viraram o nosso almoço num dia de folga.

Lavamos a louça, varremos a casa e, lá pelas cinco horas, saímos pedalando rumo Santiago. Começou chover. Furei um pneu. O meu freio traseiro emperrou. O José teve a bondade infinita de descer uma subida de 30 minutos para ajudá-me. Obrigado. Obrigado. Obrigado. Demoramos três horas para chegar a Santiago. O Vicente chegou cansado, mas chegou.

Nos hospedamos no Selton Hotel, perto da rodoviária. Jantamos e fizemos uma visita surpresa ao irmão do José. Imaginem a cena: São as 23horas. Você está tranqüilamente assistindo um programa de televisão. Soa a campainha. Você olha pela janela e vê seis pés-de-chinelos acampados na frente do portão. Vai ter um momento de nervosismo, não vai?

Santiago/São Luiz Gonzaga (100kms)

Não dormi bem. O Vicente pareceu ter melhorado, pelo menos estava com vontade de pedalar. O José e Eduardo começaram ter problemas estomacais.

Caminho a Bossoroca,paramos para almoçar no sitio de Felipe, um amigo de José. Felipe é um colono moderno que aplica as últimas pesquisas agrícolas dum jeito ecológico.

Depois de dar-nos as bem-vindas, o Felipe nos convidou a um passeio pela fazenda dele. Parte da propriedade ainda está coberta pela mata nativa e até é o lar dum casal de bugios. O Felipe não só conhece cada árvore, ele sabe o uso tradicional de cada uma delas, tecnologia e informação que está sendo rapidamente perdida.

Almoçamos arroz carreteiro feito com charque.

Fazia algum tempo que o cubo traseiro da bicicleta de José estava fazendo um barulho estranho. Eu pensei que tivesse quebrado o eixo. Dava pra ver que um raio estava quebrado. Quando chegamos a Bossoroca, o José e eu demos uma voltinha em procura duma loja de bicicletas. Achamos a Nazaré Bike, um buraquinho que tem tudo para consertar uma Barra Forte.

-Essa bicicleta é importada, não é?
-É.
-Olha só, peças Shimano. A gente tem algumas dessas por aqui.
-O senhor tem raios?
-Raios de luxo como esses, não. Só tenho raios comuns. Mas, olha, é só trocar a catraca e botar um cubo novo...

Eu comecei ficar deprimido. O cara estava pronto pra ligar pros parentes dele e contar a novidade, uma bicicleta importada em Bossoroca. Voltei à praça central, onde estava o resto do grupo.

-O José achou a loja?
-Não sei se vão poder consertar o problema.

Um refrigerante e um sorvete mais tarde, o José apareceu.

-Não troquei o cubo, mas o dono da loja consertou o raio quebrado e não queria cobra-me nada.

Mas o cubo dele ainda fazia traquetitraquetitraqueti, nada de bom. Só mais tarde, em São Luiz Gonzaga, foi que ele conseguiu trocar os rolamentos. Os velhos tinham ficado quadrados. O serviço foi feito na oficina de bicicleta Manús Bike (3352-7271,99163079). O nome do dono é João de Deus Robidas Paredi.

Fomos acolhidos em São Luiz Gonzaga por o professor de historia, Sergio Venturini e o diretor da Escola Técnica Estadual Cruzeiro do Sul, Telvi Favin. O Sr. Venturini nos contou a história das Missões com uns detalhes que não tenho o espaço para relatar aqui, mas que vocês podem ler no livro dele, Inhacurutum. Esse também é o nome da consultoria em educação e turismo que ele dirige (55-3352-2197,55-9975-8782).

O Sr. Favin nos ofereceu alojamentos na escola, a qual tem que ser quase auto-suficiente. Se tivesse que depender só nas verbas estaduais, teria que fechar as portas. A maior parte da renda vem da piscicultura, mas na escola também criam gado, galinhas, ovelhas e um monte de outras coisas.

São Luiz Gonzaga/São Miguel das Missões (60kms)

Acordei com o "baaa" das ovelhas pastando. Comprei um pneu novo. Fomos desapontados pelos museus da cidade e pedalamos rumo S. Miguel.

A 285 é ruim, ruim, ruim. É o eixo principal do Mercosul. Centenas de caminhões passam por ela, caminhões gigantescos. E, ainda mais horrível, não tem acostamento, só pedregulhos. O acostamento asfaltado não começa até 40 quilômetros antes de chegar a Ijuí. Odiei essa rodovia.

Para piorar a situação, aconteceu um evento que devo classificar de "iminente evacuação explosiva". Estava pedalando sozinho e tinha atravessado uma ponte quando senti a iminência da explosão. (10,9,8...)A um lado, um barranco com quatro metros de altura. (7,6,5...)Do outro lado, asfalto. (4,3,2...)Nenhuma arvorezinha. (1,0...) Vários motoristas e caminhoneiros testemunharam a força irresistível da natureza e eu jurei não comer mais charque pelo resto da minha vida.

Achamos Caaró por pura sorte. Uma velhinha, dona dum botequim onde paramos para descansar, nos tinha falado do sitio. Fica a sete quilômetros da 536, a entrada às Missões. Esse santuário, que não aparece no meu mapa, é o berço das missões, os sete povos, Rio Grande do Sul e todo o que é a cultura gaúcha hoje em dia. O padre Roque Teu Kathen, um dos padres que mantém o santuário (55-505-7427), me deu uns panfletos.

"Depois de fundar numerosas comunidades cristãs (reduções) entre os índios no Paraguai e região missioneira da Argentina, entraram em terras do atual Rio Grande do Sul, onde a 3 de maio de 1626 celebraram a 1a missa em terras gaúchas, na localidade de São Nicolau. Depois de dois anos e meio de intenso trabalho missionário, fundando cinco comunidades ou "reduções", foram mortos por um grupo de índios rebeldes à evangelização, liderados pelo cacique-pagé Nheçu. Pe. Roque Gonzales e Pe. Afonso Rodrigues foram mortos na recém fundada redução de Caaró, no dia 15 de novembro de 1628, e o Pe. João de Castilho, dois dias mais tarde, em Assunção do Ijuí".

Só que, o coração do Pe. Roque Gonzales não apodreceu. Foi guardado num reliquiario que hoje é preservado em Assunção. Médicos têm examinado o tecido e garantem que é músculo cardíaco. Linda história.

A triste história é que Caaró foi o lugar onde o Eduardo, Vicente e Allison decidiram regressar para Porto Alegre. Pedalaram com Renato, José, e eu até a 536. Nos despedimos e eles continuaram caminho à rodoviária de Santo Angelo.

Falei com Eduardo ontem e ele me contou que, por sorte, pegaram uma carona até Sto. Angelo.

Nos três continuamos e chegamos a S. Miguel das Missões depois de pedalar por 12kms de estrada recém asfaltada. Que nojo.

Achamos um hotel, tomamos banho, jantamos e Renato e José foram assistir o espetáculo de som e luz. Eu caí no maior sonho. Duas horas mais tarde, batiam na minha janela.

-Luis, Luis! Abre a janela para nos poder entrar.
-O que? O que?
-Abre a janela.
-Não posso abrir a janela. Tem uma cama na frente. Vou pro gerente.

Achei outro hóspede. Ele achou o gerente. O gerente abriu a porta. Eu não fechei os olhos pelo resto da noite.

// posted by luis @ 6:06 PM (0) comments links to this post
Viagem às Missões parte 2

Santa Maria/Jaguari (117kms)

Nos despedimos do Mauricio pela manhã. Eu fiquei com saudades dele. O acho uma fonte inexaurível de otimismo.

Eu esqueci de mencionar que o Eduardo teve problemas com o bagageiro dele no primeiro dia da viagem. Em Santa Cruz do Sul, ele fabricou uma extensão para o bagageiro usando dois pedaços de pau e uns arames. A geringonça funcionou e ele continuou aperfeiçoando-a durante a viagem. Acho que vai patenteá-la. Mas, muito mais importante foi o pequeno taco de madeira que ele achou.

O pezinho da bicicleta de Eduardo é curto demais, mas com a adição do taco fica perfeito. Esse taco de madeira virou um talismã, um fetiche venerado que foi levado em procissão por todo lugar que visitamos.

Continuamos pela 287, sentido Jaguari.

Quando o José fala que "é só reta" ou "é plano daqui a diante", vocês podem apostar em que a estrada vai virar uma montanha russa. Foi o que aconteceu neste caso. Enfrentamos um sobe e desce sem fim.

O José e eu estávamos pedalando juntos quando vimos um ciclista de bombachas. Era um cara simples pedalando uma Barra Forte, a camisa aberta e as bombachas parecendo com as velas dum barco. Cumprimentamos o cidadão.

-Dá para tirar uma foto?
-Não tenho dinheiro.
-Não vamos cobrar, não. Só queremos tirar uma foto.
-Não tenho dinheiro.
-Não queremos dinheiro.

Por fim, ele aceitou e tiramos a nossa foto. O cara saiu pedalando a 30kms/hora. Acho que o cidadão ainda está falando dos dois veados de bermudas apertadas que queriam assaltá-lo.

Eu não me lembro se aconteceu durante esta etapa da jornada ou no dia anterior, mas foi um evento que eu acho teve graves repercussões. Paramos num posto de gasolina e ouvi alguém dizer.

-Tem água gelada na geladeira.

Quando abri a geladeira vi uma balde azul, sem tampa, cheio de água. Não parecia ser muito confiável e pensei que seria mais prudente comprar uma garrafa de água mineral. Foi o que eu fiz. Beber água limpa e lavar as caraminholas ou os camelbacks uma vez por dia é muito importante para evitar transtornos estomacais.

Outra coisa que gostaria de mencionar aqui é a importância de beber grandes quantias (4 ou 5 litros diários) de água antes de sentir sede e a importância de comer sal durante uma viagem no meio dum calorão. Todo o mundo goza de mim porque sempre estou comendo bolachas salgadas, mas é importante para prever a desidratação. A régua é: Quando o vosso suor ficar com um gostinho bom, é hora de comer sal. Outra régua é: Se você não urinar pelo menos uma vez por dia, é sinal de desidratação. Refrigerantes, cerveja, e cafés fazem o corpo precisar de mais água ainda.

Chegamos em Jaguari pelas sete horas. Fomos direto pro rio e descansamos. Às oito horas procuramos um hotel barato. Achamos a Pousada Bela Note, que não era muito barata. O José queria pedalar até Ernesto Alves. Eu protestei.

-Mais vinte quilômetros? Na escuridão? Sem comer? Eu não posso, não. Se vocês querem ir, podem ir embora. Eu tenho a minha rede e posso dormir em qualquer canto.

-Ta, então voltamos pra pousada.
-Mas que vamos fazer com a galinha?

Pois é. Já tínhamos comprado a janta, uma galinha congelada. Essa galinha passou a noite na geladeira da pousada, viajou no próximo dia com a gente e finalmente foi doada pro um churrasco. Eu senti certa afinidade por ela e a apelidei de Lucia. Até tive a idéia de fazer camisetas com o desenho duma galinha pedalando uma bicicleta só que não dá certo dentro do contexto cultural.

Terminamos o dia jantando no Tio Nenê. A maravilhosa Bisa foi a nossa anfitriã. Boa janta. Fogos de artifício. Carnaval de rua. Uma boa cama. Muito bom. Show de bola.

Jaguari/Ernesto Alves e cercania (50kms)

Depois dum bom café da manhã, pedalamos norte pela 287.

A paisagem começou ficar mais e mais bonita. Passamos por um bosque de pinho com vistas longínquas das coxilhas a traves das árvores. O Rio Rosário é atravessado por uma ponte ferroviária. De longe, parece ser feita de imensos troncos. É uma visão da Idade Média.

Entramos na gruta de Nossa Senhora de Lourdes. A gruta é um corte na rocha viva, como um grande golpe de machado, com uma imagem da virgem dentro. Eu achei muito interessante que, detrás da virgem, tem uma imagem de Iemanjá, figuras dos Pretos Velhos e as oferendas dos macumbeiros.

Um pequeno letreiro na entrada duma estrada de chão indicava o caminho a Ernesto Alves. Deixamos o asfalto, atravessamos uma pequena ponte de ferro, e entramos num mundo bucólico. Ernesto Alves é uma ilha no tempo. Não anotei os dados, mas acho que o José, que passava os feriados ali quando era um guri, me contou que a luz elétrica chegou lá em 1985 e a influencia da primeira televisão um pouco depois. Antes disso era só vela, lampião, aparições e lobisomens.

No balneário de Ernesto Alves, entramos no Mirante Bar, onde conheci uma figura local. O homem tem mais de 70 anos, é forte pra caramba e cuida da mãe, que está com mais de 100 anos. Quando o velho me deu uma palmada nas costas, quase me derrubou.

Os motociclistas da TTT (Trilhas, Tombos e Tragos) estavam lá. O Freddy ficou admirado com a nossa façanha ciclística.

-Eu pensei que a gente era maluca, mas vocês são mais malucos que a gente. Têm que passar pela casa e comer um churrasco.

Comemos até estourar. Ali foi onde nos despedimos de Lucia, a galinha. O Freddy ligou para o repórter dum jornal local. Tivemos os nossos 15 minutos de fama. O repórter nos entrevistou, tentando fazer que o José condenasse o novo sistema de educação rural. O José foi muito circunspeto, mas tenho certeza que a manchete vai ser algo como "Filho Pródigo de Santiago Fica Horrorizado...".
Também fomos fotografados sentados sobre as nossas bicicletas e lendo o jornal.

-Mas o que é isso? Estamos fazendo uma propaganda para o jornal. O jornal deve pelo menos patrocinar parte da nossa viagem.

O Eduardo acalmou os meus instintos capitalistas.

A casa que a família do José tem em Ernesto Alves é um museu colonial. Eu fiquei doido. O rádio deve ter 60 anos. A mesa da cozinha é feita de latão, um anúncio antigo com mais de 50 anos. Eu sendo o José, desmontava a mesa e pendurava o anúncio na parede de minha casa como uma obra de arte. Naturalmente, o nosso anfitrião também tinha mel puro, um garrafão de cachaça de alambique, árvores frutíferas no quintal, leite da vaca da vizinha, melancia de outro vizinho, pão fresco, camas para um exército, em fim, tudo. Não sei porque o cara mora em Porto Alegre.

Estávamos lavando a nossa roupa no quintal quando o Vicente começou passar mal com vômitos e diarréia. Ficou muito pálido e muito fraco. O problema com um paraíso bucólico é que não tem farmácia na esquina ou médico de plantão.

-Que queres fazer?
-Eu vou ficar deitado. Já me sinto melhor.
-Tens certeza?
-Tenho. Allison e eu vamos ficar descansando.
-A gente vai dar uma voltinha pela gruta de Nossa Senhora de Fátima e volta já.

Eu fiquei com pena de Vicente. Puxa, chegar a um lugar tão bonito e ficar doente é muito ruim.

A distancia à Nova Esperança do Sul é curta, mas a subida é íngreme e, apos a subida, vem uns quatro quilômetros de estrada de chão. O esforço valeu a pena.

Topamos com uma igreja antiga de pedra maciça no meio dum pasto cheio de vacas. Não sei o nome da igreja e as portas estavam trancadas assim que não pudemos entrar, mas ela me deixou com uma emoção entre tristeza e saudade que ainda sinto.

A gruta de Nossa Senhora de Fátima é um lugar muito impressionante, literalmente uma catedral subterrânea esculpida pelas águas dum rio durante milênios. É cheia de corredores secundários, salões, passagens estreitas e saídas inesperadas.

Ao lado da gruta fica uma cachoeira, o Véu da Noiva, mais uma segunda cachoeira que não visitei. A seca tem diminuído o volumem da água consideravelmente, mas, ainda assim, a cascata é muito bela.

Descansamos um pouco no Bar da Gruta e voltamos para Ernesto Alves.

O Vicente estava melhor, mas ainda muito fraco.

-Que queres fazer?
-Não sei. Não posso pedalar a lugar nenhum.
-Vamos ficar aqui amanhã e, pela tarde, se estas com mais forças, damos um pulinho a Santiago. Podes ir ao posto de saúde ou à farmácia.

Arrumamos as camas para nos deitar. Eu peguei a minha rede e a pendurei entre duas árvores. Eu acho que o José ficou um pouco magoado por eu não querer dormir dentro da casa.

-Luis, lá dentro tem camas, cobertores, tudo.
-Mas José, quando é que vou ter outra oportunidade de dormir debaixo dum céu como esse?

Não tinha uma nuvem. O ar estava cristalino. Passei a noite com centenas de milhares de estrelas como teto.

// posted by luis @ 12:27 PM (0) comments links to this post

terça-feira, fevereiro 15, 2005

Viagem às Missões parte 1.

Uma viagem de bicicleta do cinco de fevereiro de 05 ao 13 de fevereiro de 05. As fotos virão mais tarde.

-Quantos quilômetros pedalaram?

Pedalamos 800 quilômetros, mas essa não é uma pergunta muito interessante. Mais interessante seria perguntar,

-Aprenderam alguma coisa?
-Tiveram vivências emocionantes?
-Superaram limites pessoais?

Eu, sim. Acho que o resto do grupo também.

Como foi o assunto...

Um amigo, o José, planejou uma viagem/maratona que ia percorrer o seguinte trajeto pelo Rio Grande do Sul e Sta. Catarina:

De ônibus até Jaguari, depois, de bicicleta a Santiago, Bossoroca, São Luiz Gonzaga, S. Miguel das Missões, Ijuí, Passo Fundo, Vacaria, Lajes e Garopaba.

Eu reclamei.

-Minha Sagrada Virgem do Perpetuo Pedal! Só de Ijuí a Passo Fundo são uns 190kms. De Passo Fundo a Vacaria também. Eu não sou nenhum super-homem.

-Tens que vir.

-E é Carnaval! Eu não quero pedalar pelo litoral no Carnaval.

-Tens que vir.

-Bem, eu quero conhecer as Missões, mas não quero sair de Porto Alegre de ônibus. Eu vou embora de bicicleta no dia três e encontro vocês em Jaguari na noite do dia cinco, pedalo com vocês até Ijuí e regresso a Porto Alegre de ônibus.

Os planos mudaram mais uma vez e todos decidiram sair de Porto Alegre pedalando.

Quem foi?
O Alberto, veterano de passeios pelo Uruguai e, eu acho, a Argentina também.
O Mauricio, parceiro no pedal a Carlos Barbosa.
Vicente e Allison, o duo dinámico.
O José e o Renato, sempre na frente.
O Eduardo, que decidiu comprar um alforje parecido com um pequeno elefante roxo.
E eu, pedalando a famosa Vovô-Matic.

Porto Alegre/Sta. Cruz do Sul (171kms) 

A 386 até a 287 é a rota mais direta, mas é muito movimentada e a 386 não tem acostamento depois de Esteio, assim que fomos por Charqueadas, General Câmara e Vale Verde.

Tinhamos três (ou quatro?) máquinas fotográficas e, em cada parada durante a viagem, a gente parecia com paparazzi.

-Agora com a minha.
-Tirastes? Já tirastes?
-Eu não tirei.
-Tira com essa também.
-Eu quero uma foto. Eu quero uma foto.

Que barato. Ou, como o Renato repetia, "Show de bola".

Não almoçamos em General Câmara, um erro duma magnitude astronômica, pois não tem onde comer nos seguintes 50kms. O pior é que a culpa foi minha.

-Buffet livre num posto de gasolina com um cheiro ruim de combustível? Deus me livre.

E Deus nos deixou com fome.

Eu gosto de começar o dia com o mesmo ritmo e velocidade que vou ter depois de dez horas pedalando. Ou seja, no começo do dia, eu fico dois ou três quilômetros atrás da gente. Assim foi que, a 10kms de Vale Verde, encontrei o grupo reunido debaixo da sombra dumas árvores na frente dum boteco. Todos estavam supervisionando o Eduardo, que estava mexendo com a corrente da bicicleta dele. Ignorei os problemas mecânicos e corri pro boteco. Comprei a pior cuca que já comi na minha vida e, quando saí do boteco com a boca cheia, perguntei pro Eduardo.

-O que estás fazendo?
-Dando a volta a corrente pra ver se para o barulho.
-E tu tiraste o pino?
-Tirei.

Não se pode tirar o pino do elo quando abrir uma corrente. Se fizer, é o cão colocar de novo. O Eduardo suava no calor. A gente fazia comentários úteis.

-Tem que esterilizar a corrente antes de instalar de novo.
-Lembra-te de tirar a ferramenta.

A corrente só precisava de óleo.

A seguinte parada foi no Parque de Pesca Panorama (9997-5971, 51-6141054), que é o lugar onde os participantes do Audax 200 voltam pra Porto Alegre. A Irma só tinha café, refrigerantes e torradas. Ela não estava esperando tanta gente. Quando o pessoal começou jogar sinuca, eu decidi ir embora.

Um calor infernal combinado com uma subida infernal completou a nossa viagem à Santa Cruz do Sul onde tínhamos combinado encontra-nos com o Luiz Faccin de Faccin Bicicletas Ltda (51-713-2281). Antes de visitar a loja, nos hospedamos no Antonio´s Hotel, onde recebemos um telefonema do Eduardo. O Alberto estava passando mal e não podia pedalar mais.

Contatamos o Luiz Faccin e ele teve a gentileza de pegar a camionete dele e resgatar o Alberto, que chegou muito pálido e fraco. Eu acho que pode ter sido desidratação.

Guardamos as bicicletas no salão de jogos, mas quem ia cuidar delas? Eu queria poupar a diária, assim que virei segurança e dormi na mesa de sinuca.

Cometemos um pequeno erro táctico. O Carnaval desfilava a 30 metros do hotel.

Notas: É uma rota bonita, mas dá para ver os estragos da seca. Os rios estão bem baixos. Os cultivos estão queimados e murchos. O gado está emagrecendo.

Sta. Cruz do Sul/Santa Maria (152kms) 

Quando revisei a bicicleta pela manhã, achei que uma das pastilhas do freio traseiro estava desajustada e tinha gastado a parede do pneu. Uma bolha tinha se formado e o pneu estava pronto para estourar. Ligamos para o Luiz Faccin, mas ele estava de viagem. Sendo domingo, o comercio estava fechado. Eu decidi continuar com o pneu como estava. Se estourasse, o Renato tinha um pneu extra.

O Alberto não se recuperou. Ele acordou muito fraco e decidiu voltar a Porto Alegre de ônibus. O acompanhamos à rodoviária e nos despedimos dele com tristeza.

Às nove horas, pegamos a 287 rumo a Sta. Maria. As subidas e descidas começaram depois de Candelaria. Foram muito cansativas.

Ouve um motim em Novo Cabrais.

-A gente almoça aqui.
-Não vou ficar com fome como ontem, não.
-Que tem pra comer?
-A la minuta? Maravilha!

O José e o Renato resmungaram, mas aceitaram, comeram e ficaram cochilando na frente do restaurante. Eu aproveitei a parada para levar a bicicleta a uma borracharia. O dono vulcanizou uns pedaços de borracha no interior do pneu e o deixou novinho em folha.

-Tu achas que vai durar?
-A Santa Maria o senhor chega.

Deixei os amigos dormindo a sesta e fui na frente. Passei pelos letreiros da Rota Paleontológica, pequenos povoados e lugarejos onde tem encontrado fósseis de animais pré-históricos. Acho que seguir a rota seria um passeio muito interessante.

O grupo passou na frente e eu fiquei pedalando com o Eduardo, assim que ele e eu perdemos o grande confronto com a Polícia Rodoviária. Ou, como o Eduardo diz.

-Será que parecemos tão inofensivos mesmo?

Segundo o Vicente, ele estava pedalando no asfalto quando um policial o parou e diz.

-Tem que pedalar no acostamento.
Vicente falou.
-O acostamento está totalmente esburacado e cheio de pedras. Não dá para pedalar.
-Então tem que empurrar a bicicleta. Vamos registrar uma ocorrência. Se alguma coisa acontecer, vai ser a sua responsabilidade.

O José e o Renato foram abordados pelos mesmos policiais.

-Tem que pedalar no acostamento.
O Renato respondeu.
-Eu sempre pedalo no acostamento, mas nestas condições é impossível. Os meus pneus não são adequados para pedras e buracos.
-Quantos são? De onde vem?
-Somos sete. Saímos de Porto Alegre.
-Sete? Isso é muito preocupante. Vocês têm experiência?
-Temos. Um de nosso grupo tem viajado pelo mundo inteiro.
-Esse é o Americano? Você sabe onde é que ele está?
-Está lá atrás a uns dois ou três quilômetros.
-Eles estão a dez quilômetros de distancia.

E estávamos, porque o Eduardo e eu tínhamos parado para comer uma melancia. Não tenho a menor idéia de como o policial sabia que eu era um estrangeiro. Deve ser a traves de algum tipo de poder psíquico.

-Vamos cuidar de vocês.

Na minha opinião, os policiais estavam fazendo seus dever. Era o fim de semana de Carnaval. A estrada estava muito movimentada. Com certeza, eles já tinham tido que lidar com bêbados e acidentes de transito, não queriam responsabilizasse por mais sete malucos.

Chegamos a Santa Maria já anoitecendo. Tentamos de achar um hotel barato. Foi um sobe e desce danado pelas ladeiras da cidade. Finalmente, ficamos descansando num canto em quanto Eduardo e José continuaram procurando.

Uma mulher saiu duma casa e começou conversar com Allison.

-Eu tenho uma loja de lingerie, sabe?

A Allison sumiu. Minutos mais tarde, ela saiu da casa da mulher.

-Vicente, tu tens um real?

Eu jurei que não ia revelar isso, mas a minha responsabilidade como repórter é maior.

José e Eduardo acharam dois hotéis. O primeiro era uma espelunca com um funcionário que fedia a cachaça. O segundo, o Hotel Gloria era simples, mas adequado.

Mauricio recebeu um telefonema do irmão dele. Tinha que voltar a Porto Alegre para fazer um negócio. Espero que, se ele vire milionário, ele patrocine todos os nossos passeios.

Notas: Esse trecho da 287 não tem paisagens bonitas, mas acho que, com mais tempo disponível, valeria a pena passear pelas pequenas comunidades a cada lado da estrada. Os estragos da seca continuam. Domingo de Carnaval não é o dia para visitar Santa Maria. Todos os estudantes foram embora e tudo está fechado.

// posted by luis @ 12:52 PM (0) comments links to this post


quarta-feira, fevereiro 09, 2005

De Porto Alegre a Ijuí - notícias

Estamos eu, o Vicente, a Alison, o Eduardo, o Luis e o Renato Batista em Santiago do Boqueirão. Consta nos nossos ciclocomputadores algo cerca de 500 km rodados. Partimos no último sábado de Porto Alegre, com pernoites em Santa Cruz, Santa Maria, Jaguari, e Ernesto Alves.
Estamos indo amanhã pela manhã rumo a São Luis Gonzaga. Se tudo correr bem, nosso destino final será em Garopaba. Portanto falta algo em torno de 1000 km.
Aguardem longo relato do Luis.