sexta-feira, fevereiro 18, 2005
Viagem às Missões parte
final
São Miguel das Missões/Ijuí (86kms)
Alguma coisa está errada. O meu total de quilometragem é de 700kms mais ou
menos. Os computadores marcaram 800kms segundo o Renato. Bem, não vou chorar os
100kms. Ainda pedalamos pra cacete.
Adolf Domicó visitou as Missões em 1934. Eu sei disso porque ele caprichou na
grafite dele. Espero que tenha gostado das ruínas tanto como eu.
O site das missões é: www.missoes.iphan.gov.br, para aqueles que querem ver
fotos e obter mais informações.
Eu sempre me perguntei porque os portugueses e os espanhóis se uniram para
destruir o projeto dos Jesuítas. Português e Espanhol não cooperavam em coisa
nenhuma. Depois de visitar São Miguel e ver as ruínas e os mapas, acho que eu
sei porque. Os Jesuítas viraram uma potência militar que ameaçava controlar o
transporte fluvial do sul do hemisfério, uma situação intolerável para os reis
ibéricos. Essa é a teoria dum amador. Não tem que levá-la a sério.
Um pequeno museu tem uma coleção de santos esculpidos em madeira. É um trabalho
artístico impressionante. A peça de que mais gostei foi uma pequena imagem de
São Nicolau com o rosto dum índio guarani. Emocionou-me. Foi uma comunicação
direta com um artista morto há séculos.
Mais 12kms de asfalto grudento. Mais caminhões perigosos. Mais acostamento
ruim. O único prazer que tive na viagem a Ijuí foi um breve descanso na
Vinícola Fin.
Três gerações de tradição italiana garantem um vinho maravilhoso. Posso
recomendar o Niagra, com um bouquet de fruta delicado, mas encorpado, o
Moscatel, mais robusto, que deixa uma sugestão de pêra no paladar, e o
Bordeaux, elementar sem ser agressivo. O suco de uva puro também é uma delícia.
Achei o José e o Renato na praça central de Ijuí, de onde uma emissora de
televisão estava transmitindo o programa da Lotto. Eu não ganhei premio nenhum.
Nos alojamos na casa duma senhora que aluga quartos para estudantes. Depois de
comer uma pizza ruim demais e cara demais, me despedi de meus parceiros. Eles
iam continuar a viagem às seis horas e eu tinha que pegar um ônibus a Porto
Alegre pela manhã. Caí no sonho lembrando-me dos meus dias de estudante.
Epílogo.
Quando acordei, José e Renato já tinham ido embora. Senti saudades deles.
Paguei pelo meu quarto e pedalei a rodoviária.
Comprei o último espaço disponível no semi-direto das 12:50. O funcionário foi
muito gentil. Ele deu-me duas caixas de papelão e corda para embalar a
Vovô-Matic. Desmontei a bicicleta e a embalei. Quando estava amarrando o último
nó, quem aparece se não o Renato e o José. José tinha estourado um joelho e
teve que desistir da viagem. Eles pegaram o pinga-pinga das 10horas.
Eu viajei na poltrona #50, ao lado do banheiro, sentindo esse cheirinho bom até
Porto Alegre. Devi ter pegado o pinga-pinga com os amigos.
Montar a bicicleta no meio da rodoviária em Porto Alegre foi o maior saco. Saí
pedalando pela Mauá e achei que as ruas de Porto Alegre são até mais perigosas
que a 285. Tive o prazer de ver o Renato quando passei pelo Gasômetro.
-O José pegou um táxi na rodoviária e foi pra casa.
-Coitado. Quanto pedalamos?
-800 quilômetros.
Não importa se foram um pouco mais ou um pouco menos. A distancia não é medida
em quilômetros. Ela é medida em camaradagem, solidariedade e vivências.
Dicas e etc.
*Lembra-te de manter um ritmo constante e não uma velocidade constante.
*É um passeio e não uma competição.
*Mantém contato visual com os teus parceiros.
*Caminha um quilômetro cada três ou quatro horas de pedal.
*Toda subida não tem que ser feita no pedal ou de uma vez só. Cuida de teus
joelhos.
*Faz paradas curtas em lugares agradáveis (5-10 minutos).
*Lembra-te de agendar tempo para a manutenção básica do dia a dia. (ajustar a
bicicleta e lubrificá-la, lavar a roupa, comprar comida, procurar um remédio,
fazer um telefonema, etc.). Não queres precisar fazer essas coisas às 1horas da
manhã ou num domingo de feriado.
*Usa sabonete de cirurgião (sara pequenas infecções).
*Vaselina ou Hypogloss pra bunda antes de pedalar.
*Protetor solar, repelente, papel higiênico.
*Escova os dentes.
*Usa camisinha.
quarta-feira, fevereiro 16, 2005
Viagem às Missões parte 3
Ernesto Alves/Santiago (27kms)
Eu dormi por 14 horas. Só me mexi para mudar a rede do sol para a sombra. Na
noite anterior, a gente jantou no Mirante Bar, carne assada, aipim, arroz,
salada e não me lembro o que mais. O dono não sabia quanto cobra-nos.
"Paguem o que vocês achar certo" foi o que ele diz. As sobras do
jantar viraram o nosso almoço num dia de folga.
Lavamos a louça, varremos a casa e, lá pelas cinco horas, saímos pedalando rumo
Santiago. Começou chover. Furei um pneu. O meu freio traseiro emperrou. O José
teve a bondade infinita de descer uma subida de 30 minutos para ajudá-me. Obrigado.
Obrigado. Obrigado. Demoramos três horas para chegar a Santiago. O Vicente
chegou cansado, mas chegou.
Nos hospedamos no Selton Hotel, perto da rodoviária. Jantamos e fizemos uma
visita surpresa ao irmão do José. Imaginem a cena: São as 23horas. Você está
tranqüilamente assistindo um programa de televisão. Soa a campainha. Você olha
pela janela e vê seis pés-de-chinelos acampados na frente do portão. Vai ter um
momento de nervosismo, não vai?
Santiago/São Luiz Gonzaga (100kms)
Não dormi bem. O Vicente pareceu ter melhorado, pelo menos estava com vontade
de pedalar. O José e Eduardo começaram ter problemas estomacais.
Caminho a Bossoroca,paramos para almoçar no sitio de Felipe, um amigo de José.
Felipe é um colono moderno que aplica as últimas pesquisas agrícolas dum jeito
ecológico.
Depois de dar-nos as bem-vindas, o Felipe nos convidou a um passeio pela
fazenda dele. Parte da propriedade ainda está coberta pela mata nativa e até é
o lar dum casal de bugios. O Felipe não só conhece cada árvore, ele sabe o uso
tradicional de cada uma delas, tecnologia e informação que está sendo
rapidamente perdida.
Almoçamos arroz carreteiro feito com charque.
Fazia algum tempo que o cubo traseiro da bicicleta de José estava fazendo um barulho
estranho. Eu pensei que tivesse quebrado o eixo. Dava pra ver que um raio
estava quebrado. Quando chegamos a Bossoroca, o José e eu demos uma voltinha em
procura duma loja de bicicletas. Achamos a Nazaré Bike, um buraquinho que tem
tudo para consertar uma Barra Forte.
-Essa bicicleta é importada, não é?
-É.
-Olha só, peças Shimano. A gente tem algumas dessas por aqui.
-O senhor tem raios?
-Raios de luxo como esses, não. Só tenho raios comuns. Mas, olha, é só trocar a
catraca e botar um cubo novo...
Eu comecei ficar deprimido. O cara estava pronto pra ligar pros parentes dele e
contar a novidade, uma bicicleta importada em Bossoroca. Voltei à praça
central, onde estava o resto do grupo.
-O José achou a loja?
-Não sei se vão poder consertar o problema.
Um refrigerante e um sorvete mais tarde, o José apareceu.
-Não troquei o cubo, mas o dono da loja consertou o raio quebrado e não queria
cobra-me nada.
Mas o cubo dele ainda fazia traquetitraquetitraqueti, nada de bom. Só mais
tarde, em São Luiz Gonzaga, foi que ele conseguiu trocar os rolamentos. Os
velhos tinham ficado quadrados. O serviço foi feito na oficina de bicicleta
Manús Bike (3352-7271,99163079). O nome do dono é João de Deus Robidas Paredi.
Fomos acolhidos em São Luiz Gonzaga por o professor de historia, Sergio
Venturini e o diretor da Escola Técnica Estadual Cruzeiro do Sul, Telvi Favin.
O Sr. Venturini nos contou a história das Missões com uns detalhes que não
tenho o espaço para relatar aqui, mas que vocês podem ler no livro dele,
Inhacurutum. Esse também é o nome da consultoria em educação e turismo que ele
dirige (55-3352-2197,55-9975-8782).
O Sr. Favin nos ofereceu alojamentos na escola, a qual tem que ser quase
auto-suficiente. Se tivesse que depender só nas verbas estaduais, teria que
fechar as portas. A maior parte da renda vem da piscicultura, mas na escola
também criam gado, galinhas, ovelhas e um monte de outras coisas.
São Luiz Gonzaga/São Miguel das Missões (60kms)
Acordei com o "baaa" das ovelhas pastando. Comprei um pneu novo.
Fomos desapontados pelos museus da cidade e pedalamos rumo S. Miguel.
A 285 é ruim, ruim, ruim. É o eixo principal do Mercosul. Centenas de caminhões
passam por ela, caminhões gigantescos. E, ainda mais horrível, não tem
acostamento, só pedregulhos. O acostamento asfaltado não começa até 40
quilômetros antes de chegar a Ijuí. Odiei essa rodovia.
Para piorar a situação, aconteceu um evento que devo classificar de
"iminente evacuação explosiva". Estava pedalando sozinho e tinha
atravessado uma ponte quando senti a iminência da explosão. (10,9,8...)A um
lado, um barranco com quatro metros de altura. (7,6,5...)Do outro lado,
asfalto. (4,3,2...)Nenhuma arvorezinha. (1,0...) Vários motoristas e
caminhoneiros testemunharam a força irresistível da natureza e eu jurei não
comer mais charque pelo resto da minha vida.
Achamos Caaró por pura sorte. Uma velhinha, dona dum botequim onde paramos para
descansar, nos tinha falado do sitio. Fica a sete quilômetros da 536, a entrada
às Missões. Esse santuário, que não aparece no meu mapa, é o berço das missões,
os sete povos, Rio Grande do Sul e todo o que é a cultura gaúcha hoje em dia. O
padre Roque Teu Kathen, um dos padres que mantém o santuário (55-505-7427), me
deu uns panfletos.
"Depois de fundar numerosas comunidades cristãs (reduções) entre os índios
no Paraguai e região missioneira da Argentina, entraram em terras do atual Rio
Grande do Sul, onde a 3 de maio de 1626 celebraram a 1a missa em terras
gaúchas, na localidade de São Nicolau. Depois de dois anos e meio de intenso
trabalho missionário, fundando cinco comunidades ou "reduções", foram
mortos por um grupo de índios rebeldes à evangelização, liderados pelo
cacique-pagé Nheçu. Pe. Roque Gonzales e Pe. Afonso Rodrigues foram mortos na
recém fundada redução de Caaró, no dia 15 de novembro de 1628, e o Pe. João de
Castilho, dois dias mais tarde, em Assunção do Ijuí".
Só que, o coração do Pe. Roque Gonzales não apodreceu. Foi guardado num
reliquiario que hoje é preservado em Assunção. Médicos têm examinado o tecido e
garantem que é músculo cardíaco. Linda história.
A triste história é que Caaró foi o lugar onde o Eduardo, Vicente e Allison
decidiram regressar para Porto Alegre. Pedalaram com Renato, José, e eu até a
536. Nos despedimos e eles continuaram caminho à rodoviária de Santo Angelo.
Falei com Eduardo ontem e ele me contou que, por sorte, pegaram uma carona até
Sto. Angelo.
Nos três continuamos e chegamos a S. Miguel das Missões depois de pedalar por
12kms de estrada recém asfaltada. Que nojo.
Achamos um hotel, tomamos banho, jantamos e Renato e José foram assistir o
espetáculo de som e luz. Eu caí no maior sonho. Duas horas mais tarde, batiam
na minha janela.
-Luis, Luis! Abre a janela para nos poder entrar.
-O que? O que?
-Abre a janela.
-Não posso abrir a janela. Tem uma cama na frente. Vou pro gerente.
Achei outro hóspede. Ele achou o gerente. O gerente abriu a porta. Eu não
fechei os olhos pelo resto da noite.
Viagem às Missões parte 2
Santa Maria/Jaguari (117kms)
Nos despedimos do Mauricio pela manhã. Eu fiquei com saudades dele. O acho uma
fonte inexaurível de otimismo.
Eu esqueci de mencionar que o Eduardo teve problemas com o bagageiro dele no
primeiro dia da viagem. Em Santa Cruz do Sul, ele fabricou uma extensão para o
bagageiro usando dois pedaços de pau e uns arames. A geringonça funcionou e ele
continuou aperfeiçoando-a durante a viagem. Acho que vai patenteá-la. Mas,
muito mais importante foi o pequeno taco de madeira que ele achou.
O pezinho da bicicleta de Eduardo é curto demais, mas com a adição do taco fica
perfeito. Esse taco de madeira virou um talismã, um fetiche venerado que foi
levado em procissão por todo lugar que visitamos.
Continuamos pela 287, sentido Jaguari.
Quando o José fala que "é só reta" ou "é plano daqui a
diante", vocês podem apostar em que a estrada vai virar uma montanha
russa. Foi o que aconteceu neste caso. Enfrentamos um sobe e desce sem fim.
O José e eu estávamos pedalando juntos quando vimos um ciclista de bombachas.
Era um cara simples pedalando uma Barra Forte, a camisa aberta e as bombachas
parecendo com as velas dum barco. Cumprimentamos o cidadão.
-Dá para tirar uma foto?
-Não tenho dinheiro.
-Não vamos cobrar, não. Só queremos tirar uma foto.
-Não tenho dinheiro.
-Não queremos dinheiro.
Por fim, ele aceitou e tiramos a nossa foto. O cara saiu pedalando a
30kms/hora. Acho que o cidadão ainda está falando dos dois veados de bermudas
apertadas que queriam assaltá-lo.
Eu não me lembro se aconteceu durante esta etapa da jornada ou no dia anterior,
mas foi um evento que eu acho teve graves repercussões. Paramos num posto de
gasolina e ouvi alguém dizer.
-Tem água gelada na geladeira.
Quando abri a geladeira vi uma balde azul, sem tampa, cheio de água. Não
parecia ser muito confiável e pensei que seria mais prudente comprar uma
garrafa de água mineral. Foi o que eu fiz. Beber água limpa e lavar as
caraminholas ou os camelbacks uma vez por dia é muito importante para evitar
transtornos estomacais.
Outra coisa que gostaria de mencionar aqui é a importância de beber grandes
quantias (4 ou 5 litros diários) de água antes de sentir sede e a importância
de comer sal durante uma viagem no meio dum calorão. Todo o mundo goza de mim
porque sempre estou comendo bolachas salgadas, mas é importante para prever a
desidratação. A régua é: Quando o vosso suor ficar com um gostinho bom, é hora
de comer sal. Outra régua é: Se você não urinar pelo menos uma vez por dia, é
sinal de desidratação. Refrigerantes, cerveja, e cafés fazem o corpo precisar
de mais água ainda.
Chegamos em Jaguari pelas sete horas. Fomos direto pro rio e descansamos. Às
oito horas procuramos um hotel barato. Achamos a Pousada Bela Note, que não era
muito barata. O José queria pedalar até Ernesto Alves. Eu protestei.
-Mais vinte quilômetros? Na escuridão? Sem comer? Eu não posso, não. Se vocês
querem ir, podem ir embora. Eu tenho a minha rede e posso dormir em qualquer
canto.
-Ta, então voltamos pra pousada.
-Mas que vamos fazer com a galinha?
Pois é. Já tínhamos comprado a janta, uma galinha congelada. Essa galinha
passou a noite na geladeira da pousada, viajou no próximo dia com a gente e
finalmente foi doada pro um churrasco. Eu senti certa afinidade por ela e a
apelidei de Lucia. Até tive a idéia de fazer camisetas com o desenho duma
galinha pedalando uma bicicleta só que não dá certo dentro do contexto
cultural.
Terminamos o dia jantando no Tio Nenê. A maravilhosa Bisa foi a nossa anfitriã.
Boa janta. Fogos de artifício. Carnaval de rua. Uma boa cama. Muito bom. Show
de bola.
Jaguari/Ernesto Alves e cercania (50kms)
Depois dum bom café da manhã, pedalamos norte pela 287.
A paisagem começou ficar mais e mais bonita. Passamos por um bosque de pinho
com vistas longínquas das coxilhas a traves das árvores. O Rio Rosário é
atravessado por uma ponte ferroviária. De longe, parece ser feita de imensos
troncos. É uma visão da Idade Média.
Entramos na gruta de Nossa Senhora de Lourdes. A gruta é um corte na rocha
viva, como um grande golpe de machado, com uma imagem da virgem dentro. Eu
achei muito interessante que, detrás da virgem, tem uma imagem de Iemanjá,
figuras dos Pretos Velhos e as oferendas dos macumbeiros.
Um pequeno letreiro na entrada duma estrada de chão indicava o caminho a
Ernesto Alves. Deixamos o asfalto, atravessamos uma pequena ponte de ferro, e
entramos num mundo bucólico. Ernesto Alves é uma ilha no tempo. Não anotei os
dados, mas acho que o José, que passava os feriados ali quando era um guri, me
contou que a luz elétrica chegou lá em 1985 e a influencia da primeira
televisão um pouco depois. Antes disso era só vela, lampião, aparições e
lobisomens.
No balneário de Ernesto Alves, entramos no Mirante Bar, onde conheci uma figura
local. O homem tem mais de 70 anos, é forte pra caramba e cuida da mãe, que
está com mais de 100 anos. Quando o velho me deu uma palmada nas costas, quase
me derrubou.
Os motociclistas da TTT (Trilhas, Tombos e Tragos) estavam lá. O Freddy ficou
admirado com a nossa façanha ciclística.
-Eu pensei que a gente era maluca, mas vocês são mais malucos que a gente. Têm
que passar pela casa e comer um churrasco.
Comemos até estourar. Ali foi onde nos despedimos de Lucia, a galinha. O Freddy
ligou para o repórter dum jornal local. Tivemos os nossos 15 minutos de fama. O
repórter nos entrevistou, tentando fazer que o José condenasse o novo sistema
de educação rural. O José foi muito circunspeto, mas tenho certeza que a manchete
vai ser algo como "Filho Pródigo de Santiago Fica Horrorizado...".
Também fomos fotografados sentados sobre as nossas bicicletas e lendo o jornal.
-Mas o que é isso? Estamos fazendo uma propaganda para o jornal. O jornal deve
pelo menos patrocinar parte da nossa viagem.
O Eduardo acalmou os meus instintos capitalistas.
A casa que a família do José tem em Ernesto Alves é um museu colonial. Eu
fiquei doido. O rádio deve ter 60 anos. A mesa da cozinha é feita de latão, um
anúncio antigo com mais de 50 anos. Eu sendo o José, desmontava a mesa e
pendurava o anúncio na parede de minha casa como uma obra de arte.
Naturalmente, o nosso anfitrião também tinha mel puro, um garrafão de cachaça
de alambique, árvores frutíferas no quintal, leite da vaca da vizinha, melancia
de outro vizinho, pão fresco, camas para um exército, em fim, tudo. Não sei
porque o cara mora em Porto Alegre.
Estávamos lavando a nossa roupa no quintal quando o Vicente começou passar mal
com vômitos e diarréia. Ficou muito pálido e muito fraco. O problema com um
paraíso bucólico é que não tem farmácia na esquina ou médico de plantão.
-Que queres fazer?
-Eu vou ficar deitado. Já me sinto melhor.
-Tens certeza?
-Tenho. Allison e eu vamos ficar descansando.
-A gente vai dar uma voltinha pela gruta de Nossa Senhora de Fátima e volta já.
Eu fiquei com pena de Vicente. Puxa, chegar a um lugar tão bonito e ficar
doente é muito ruim.
A distancia à Nova Esperança do Sul é curta, mas a subida é íngreme e, apos a
subida, vem uns quatro quilômetros de estrada de chão. O esforço valeu a pena.
Topamos com uma igreja antiga de pedra maciça no meio dum pasto cheio de vacas.
Não sei o nome da igreja e as portas estavam trancadas assim que não pudemos
entrar, mas ela me deixou com uma emoção entre tristeza e saudade que ainda
sinto.
A gruta de Nossa Senhora de Fátima é um lugar muito impressionante,
literalmente uma catedral subterrânea esculpida pelas águas dum rio durante
milênios. É cheia de corredores secundários, salões, passagens estreitas e
saídas inesperadas.
Ao lado da gruta fica uma cachoeira, o Véu da Noiva, mais uma segunda cachoeira
que não visitei. A seca tem diminuído o volumem da água consideravelmente, mas,
ainda assim, a cascata é muito bela.
Descansamos um pouco no Bar da Gruta e voltamos para Ernesto Alves.
O Vicente estava melhor, mas ainda muito fraco.
-Que queres fazer?
-Não sei. Não posso pedalar a lugar nenhum.
-Vamos ficar aqui amanhã e, pela tarde, se estas com mais forças, damos um
pulinho a Santiago. Podes ir ao posto de saúde ou à farmácia.
Arrumamos as camas para nos deitar. Eu peguei a minha rede e a pendurei entre
duas árvores. Eu acho que o José ficou um pouco magoado por eu não querer
dormir dentro da casa.
-Luis, lá dentro tem camas, cobertores, tudo.
-Mas José, quando é que vou ter outra oportunidade de dormir debaixo dum céu
como esse?
Não tinha uma nuvem. O ar estava cristalino. Passei a noite com centenas de
milhares de estrelas como teto.
terça-feira, fevereiro 15, 2005
Viagem às Missões parte
1.
Uma viagem de bicicleta do cinco de fevereiro de 05 ao 13 de fevereiro de 05.
As fotos virão mais tarde.
-Quantos quilômetros pedalaram?
Pedalamos 800 quilômetros, mas essa não é uma pergunta muito interessante. Mais
interessante seria perguntar,
-Aprenderam alguma coisa?
-Tiveram vivências emocionantes?
-Superaram limites pessoais?
Eu, sim. Acho que o resto do grupo também.
Como foi o assunto...
Um amigo, o José, planejou uma viagem/maratona que ia percorrer o seguinte
trajeto pelo Rio Grande do Sul e Sta. Catarina:
De ônibus até Jaguari, depois, de bicicleta a Santiago, Bossoroca, São Luiz
Gonzaga, S. Miguel das Missões, Ijuí, Passo Fundo, Vacaria, Lajes e Garopaba.
Eu reclamei.
-Minha Sagrada Virgem do Perpetuo Pedal! Só de Ijuí a Passo Fundo são uns
190kms. De Passo Fundo a Vacaria também. Eu não sou nenhum super-homem.
-Tens que vir.
-E é Carnaval! Eu não quero pedalar pelo litoral no Carnaval.
-Tens que vir.
-Bem, eu quero conhecer as Missões, mas não quero sair de Porto Alegre de
ônibus. Eu vou embora de bicicleta no dia três e encontro vocês em Jaguari na
noite do dia cinco, pedalo com vocês até Ijuí e regresso a Porto Alegre de
ônibus.
Os planos mudaram mais uma vez e todos decidiram sair de Porto Alegre
pedalando.
Quem foi?
O Alberto, veterano de passeios pelo Uruguai e, eu acho, a Argentina também.
O Mauricio, parceiro no pedal a Carlos Barbosa.
Vicente e Allison, o duo dinámico.
O José e o Renato, sempre na frente.
O Eduardo, que decidiu comprar um alforje parecido com um pequeno elefante
roxo.
E eu, pedalando a famosa Vovô-Matic.
Porto Alegre/Sta. Cruz do Sul (171kms)
A 386 até a 287 é a rota mais direta, mas é muito movimentada e a 386 não tem
acostamento depois de Esteio, assim que fomos por Charqueadas, General Câmara e
Vale Verde.
Tinhamos três (ou quatro?) máquinas fotográficas e, em cada parada durante a
viagem, a gente parecia com paparazzi.
-Agora com a minha.
-Tirastes? Já tirastes?
-Eu não tirei.
-Tira com essa também.
-Eu quero uma foto. Eu quero uma foto.
Que barato. Ou, como o Renato repetia, "Show de bola".
Não almoçamos em General Câmara, um erro duma magnitude astronômica, pois não
tem onde comer nos seguintes 50kms. O pior é que a culpa foi minha.
-Buffet livre num posto de gasolina com um cheiro ruim de combustível? Deus me
livre.
E Deus nos deixou com fome.
Eu gosto de começar o dia com o mesmo ritmo e velocidade que vou ter depois de
dez horas pedalando. Ou seja, no começo do dia, eu fico dois ou três
quilômetros atrás da gente. Assim foi que, a 10kms de Vale Verde, encontrei o
grupo reunido debaixo da sombra dumas árvores na frente dum boteco. Todos
estavam supervisionando o Eduardo, que estava mexendo com a corrente da
bicicleta dele. Ignorei os problemas mecânicos e corri pro boteco. Comprei a
pior cuca que já comi na minha vida e, quando saí do boteco com a boca cheia,
perguntei pro Eduardo.
-O que estás fazendo?
-Dando a volta a corrente pra ver se para o barulho.
-E tu tiraste o pino?
-Tirei.
Não se pode tirar o pino do elo quando abrir uma corrente. Se fizer, é o cão
colocar de novo. O Eduardo suava no calor. A gente fazia comentários úteis.
-Tem que esterilizar a corrente antes de instalar de novo.
-Lembra-te de tirar a ferramenta.
A corrente só precisava de óleo.
A seguinte parada foi no Parque de Pesca Panorama (9997-5971, 51-6141054), que
é o lugar onde os participantes do Audax 200 voltam pra Porto Alegre. A Irma só
tinha café, refrigerantes e torradas. Ela não estava esperando tanta gente.
Quando o pessoal começou jogar sinuca, eu decidi ir embora.
Um calor infernal combinado com uma subida infernal completou a nossa viagem à
Santa Cruz do Sul onde tínhamos combinado encontra-nos com o Luiz Faccin de
Faccin Bicicletas Ltda (51-713-2281). Antes de visitar a loja, nos hospedamos
no Antonio´s Hotel, onde recebemos um telefonema do Eduardo. O Alberto estava
passando mal e não podia pedalar mais.
Contatamos o Luiz Faccin e ele teve a gentileza de pegar a camionete dele e
resgatar o Alberto, que chegou muito pálido e fraco. Eu acho que pode ter sido
desidratação.
Guardamos as bicicletas no salão de jogos, mas quem ia cuidar delas? Eu queria
poupar a diária, assim que virei segurança e dormi na mesa de sinuca.
Cometemos um pequeno erro táctico. O Carnaval desfilava a 30 metros do hotel.
Notas: É uma rota bonita, mas dá para ver os estragos da seca. Os rios estão
bem baixos. Os cultivos estão queimados e murchos. O gado está emagrecendo.
Sta. Cruz do Sul/Santa Maria (152kms)
Quando revisei a bicicleta pela manhã, achei que uma das pastilhas do freio
traseiro estava desajustada e tinha gastado a parede do pneu. Uma bolha tinha
se formado e o pneu estava pronto para estourar. Ligamos para o Luiz Faccin,
mas ele estava de viagem. Sendo domingo, o comercio estava fechado. Eu decidi
continuar com o pneu como estava. Se estourasse, o Renato tinha um pneu extra.
O Alberto não se recuperou. Ele acordou muito fraco e decidiu voltar a Porto
Alegre de ônibus. O acompanhamos à rodoviária e nos despedimos dele com
tristeza.
Às nove horas, pegamos a 287 rumo a Sta. Maria. As subidas e descidas começaram
depois de Candelaria. Foram muito cansativas.
Ouve um motim em Novo Cabrais.
-A gente almoça aqui.
-Não vou ficar com fome como ontem, não.
-Que tem pra comer?
-A la minuta? Maravilha!
O José e o Renato resmungaram, mas aceitaram, comeram e ficaram cochilando na
frente do restaurante. Eu aproveitei a parada para levar a bicicleta a uma
borracharia. O dono vulcanizou uns pedaços de borracha no interior do pneu e o
deixou novinho em folha.
-Tu achas que vai durar?
-A Santa Maria o senhor chega.
Deixei os amigos dormindo a sesta e fui na frente. Passei pelos letreiros da
Rota Paleontológica, pequenos povoados e lugarejos onde tem encontrado fósseis
de animais pré-históricos. Acho que seguir a rota seria um passeio muito
interessante.
O grupo passou na frente e eu fiquei pedalando com o Eduardo, assim que ele e
eu perdemos o grande confronto com a Polícia Rodoviária. Ou, como o Eduardo
diz.
-Será que parecemos tão inofensivos mesmo?
Segundo o Vicente, ele estava pedalando no asfalto quando um policial o parou e
diz.
-Tem que pedalar no acostamento.
Vicente falou.
-O acostamento está totalmente esburacado e cheio de pedras. Não dá para
pedalar.
-Então tem que empurrar a bicicleta. Vamos registrar uma ocorrência. Se alguma
coisa acontecer, vai ser a sua responsabilidade.
O José e o Renato foram abordados pelos mesmos policiais.
-Tem que pedalar no acostamento.
O Renato respondeu.
-Eu sempre pedalo no acostamento, mas nestas condições é impossível. Os meus
pneus não são adequados para pedras e buracos.
-Quantos são? De onde vem?
-Somos sete. Saímos de Porto Alegre.
-Sete? Isso é muito preocupante. Vocês têm experiência?
-Temos. Um de nosso grupo tem viajado pelo mundo inteiro.
-Esse é o Americano? Você sabe onde é que ele está?
-Está lá atrás a uns dois ou três quilômetros.
-Eles estão a dez quilômetros de distancia.
E estávamos, porque o Eduardo e eu tínhamos parado para comer uma melancia. Não
tenho a menor idéia de como o policial sabia que eu era um estrangeiro. Deve
ser a traves de algum tipo de poder psíquico.
-Vamos cuidar de vocês.
Na minha opinião, os policiais estavam fazendo seus dever. Era o fim de semana
de Carnaval. A estrada estava muito movimentada. Com certeza, eles já tinham
tido que lidar com bêbados e acidentes de transito, não queriam
responsabilizasse por mais sete malucos.
Chegamos a Santa Maria já anoitecendo. Tentamos de achar um hotel barato. Foi
um sobe e desce danado pelas ladeiras da cidade. Finalmente, ficamos
descansando num canto em quanto Eduardo e José continuaram procurando.
Uma mulher saiu duma casa e começou conversar com Allison.
-Eu tenho uma loja de lingerie, sabe?
A Allison sumiu. Minutos mais tarde, ela saiu da casa da mulher.
-Vicente, tu tens um real?
Eu jurei que não ia revelar isso, mas a minha responsabilidade como repórter é
maior.
José e Eduardo acharam dois hotéis. O primeiro era uma espelunca com um
funcionário que fedia a cachaça. O segundo, o Hotel Gloria era simples, mas
adequado.
Mauricio recebeu um telefonema do irmão dele. Tinha que voltar a Porto Alegre
para fazer um negócio. Espero que, se ele vire milionário, ele patrocine todos
os nossos passeios.
Notas: Esse trecho da 287 não tem paisagens bonitas, mas acho que, com mais
tempo disponível, valeria a pena passear pelas pequenas comunidades a cada lado
da estrada. Os estragos da seca continuam. Domingo de Carnaval não é o dia para
visitar Santa Maria. Todos os estudantes foram embora e tudo está fechado.